TREZE: Holografia
“Eu atravesso as coisas – e no meio da travessia não vejo! – só estava era entretido na ideia dos lugares de saída e de chegada… Viver nem não é muito perigoso?”
(João Guimarães Rosa, em Grande Sertão: Veredas)
FINAL
Agarrada ao próprio sol, Ela fixa os olhos nos raios que entram pela extremidade do túnel, cada vez mais intensos. Por um instante a luz estoura contra suas retinas já moldadas à escuridão, explodindo em milhões de pontinhos coloridos que dançam desconexos sobre um mar de brancura. Mas a cegueira não a detém. Caminha mais e mais rápido pela senda adivinhada até que, pouco a pouco, as manchas voltam a compor imagens sólidas na tela de sua retina. E o que ela vê não lhe parece real.
A cada passo ela nota que as paredes do túnel vão se estreitando e se tornando mais úmidas, engendrando estalactites que se movem como ventosas tentando agarrá-la, ela já está quase correndo, sufocada pela angústia de ser devorada pelo túnel, corre, corre, corre, descalça, nua, descabelada, os músculos começam a se contrair, um passo, mais um, e outro, as estalagmites perfuram seus pés, ignora as cãibras nas panturrilhas, suas pernas se convertem em máquinas de correr, ela é toda músculos e ansiedade, braços abertos como uma criança que brinca de voar, corre mais e mais e mais, as mãos estendidas vão medindo a passagem, tocam as paredes de barro, o ar mais rarefeito a cada passada, a umidade gosmenta lambuza sua pele, uns passos mais e suas mãos se encolhem lambendo o barro das paredes, arrastando as folhas secas que o tempo depositou ali, mas peraí, isso não são folhas! e o túnel agora é um escoadouro de fragmentos, retalhos, amores, recortes de jornal, desilusões, poemas em papel de pão, lixo, espinhos, celofanes de bombom, cacos de vidro, algas, um pássaro morto, um lenço manchado de sangue, um punhal, decalques de chiclete, fitinhas do Senhor do Bonfim, páginas de livros, flores secas, cartazes de filmes, cartas amareladas, trechos de músicas, bilhetes de trem, mapas, verbetes, rascunhos, fotos rasgadas, palavras palavras, e o espaço agora é tão estreito que ela corre inclinada para a frente, braços colados ao corpo, joelhos dobrados, ela já não cabe ali, seu corpo se esgueira, não articula os passos, inspira, expira, inssss…piiiii…raaaa… exxxx…piiii… raaaa…, ela está de joelhos e desliza pela galeria, as paredes movediças vão se moldando ao seu corpo, os retalhos da memória se colam à sua pele como as capas de recortes dos cadernos da infância, e quanto mais estreito o funil mais veloz ela desliza, encolhida sobre si mesma, empurrada pelas contrações daquele tubo movediço que a envolve e a expulsa, ela no meio do redemunho, gira, tonteia, delira, atravessada por uma dor lancinante, fisgadas, cãibras, ossos quebrados, ela já não respira… desliza na velocidade da luz… luuuz… luuuuuz… luuuuuuuuuuuz!!! Ela desmaia e não vê mais nada.
Desperta horas depois, encolhida na relva fresca, lambuzada, tonta e cega, do lado de fora do túnel. Uma brisa suave lambe seu corpo. Ela hesita em abrir os olhos, como se não ver fosse seu último recurso para não despertar. Respira lentamente, sentindo o ar agora liberto entrar e sair de seus pulmões cansados. Tateia o leito de relva com as mãos espalmadas, recolhe uma pedrinha aqui, uma semente ali, adivinha um caminho de saúvas carregando pedaços de folhas, demora-se escutando o vento, e de olhos fechados imagina a cascata que desliza a poucos metros entoando um canto quase místico. Inspirando profundamente o cheiro de terra molhada, leva as mãos aos olhos ainda fechados e, deslizando-as pelos cabelos úmidos, vai abrindo as pálpebras pouco a pouco.
Reconhece uma clareira em meio a uma densa mata ciliar. O dia ainda está nascendo e ela escuta, ao longe, o canto do sabiá laranjeira. Estira os músculos, um a um, espreguiçando-se depois de uma noite longuíssima. Testa os movimentos, punhos, cotovelos, pés, joelhos, levanta-se devagar, ensaia uns passos, sente-se minimamente firme. Examina o próprio corpo, tentando reconhecer-se em seu novo habitat, e percebe que sua pele está recoberta por uma fina camada de recortes, uma segunda pele formada pelos retalhos da caminhada unidos desordenadamente pela gosma uterina. Com as mãos umedecidas na frescura da relva, começa a arrancá-los, um a um, sem dor, sem culpa, sem arrependimentos, dedicando-se durante horas ao ritual de extrair a pele morta e entregá-la ao vento. Novamente nua, nota que os retalhos deixaram marcas em seu corpo, manchas, verrugas, cicatrizes, pequenos portais para o pavilhão da memória. Desliza devagarinho as pontas dos dedos, acariciando sua nova casca, detendo-se em um ou outro sinal, desenhando suavemente os contornos.
Ela gosta do que vê.
O dia está lindo, céu azul, sol de primavera.
Ela tem fome. Sorri.