Arquivo de agosto, 2017

Travessia

Publicado: 13 de agosto de 2017 em ficção, terra de dentro
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TREZE: Holografia

Eu-natura-006

“Eu atravesso as coisas – e no meio da travessia não vejo! – só estava era entretido na ideia dos lugares de saída e de chegada… Viver nem não é muito perigoso?”

(João Guimarães Rosa, em Grande Sertão: Veredas)

FINAL

Agarrada ao próprio sol, Ela fixa os olhos nos raios que entram pela extremidade do túnel, cada vez mais intensos. Por um instante a luz estoura contra suas retinas já moldadas à escuridão, explodindo em milhões de pontinhos coloridos que dançam desconexos sobre um mar de brancura. Mas a cegueira não a detém. Caminha mais e mais rápido pela senda adivinhada até que, pouco a pouco, as manchas voltam a compor imagens sólidas na tela de sua retina. E o que ela vê não lhe parece real.

A cada passo ela nota que as paredes do túnel vão se estreitando e se tornando mais úmidas, engendrando estalactites que se movem como ventosas tentando agarrá-la, ela já está quase correndo, sufocada pela angústia de ser devorada pelo túnel, corre, corre, corre, descalça, nua, descabelada, os músculos começam a se contrair, um passo, mais um, e outro, as estalagmites perfuram seus pés, ignora as cãibras nas panturrilhas, suas pernas se convertem em máquinas de correr, ela é toda músculos e ansiedade, braços abertos como uma criança que brinca de voar, corre mais e mais e mais, as mãos estendidas vão medindo a passagem, tocam as paredes de barro, o ar mais rarefeito a cada passada, a umidade gosmenta lambuza sua pele, uns passos mais e suas mãos se encolhem lambendo o barro das paredes, arrastando as folhas secas que o tempo depositou ali, mas peraí, isso não são folhas! e o túnel agora é um escoadouro de fragmentos, retalhos, amores, recortes de jornal, desilusões, poemas em papel de pão, lixo, espinhos, celofanes de bombom, cacos de vidro, algas, um pássaro morto, um lenço manchado de sangue, um punhal, decalques de chiclete, fitinhas do Senhor do Bonfim, páginas de livros, flores secas, cartazes de filmes, cartas amareladas, trechos de músicas, bilhetes de trem, mapas, verbetes, rascunhos, fotos rasgadas, palavras palavras, e o espaço agora é tão estreito que ela corre inclinada para a frente, braços colados ao corpo, joelhos dobrados, ela já não cabe ali, seu corpo se esgueira, não articula os passos, inspira, expira, inssss…piiiii…raaaa… exxxx…piiii… raaaa…, ela está de joelhos e desliza pela galeria, as paredes movediças vão se moldando ao seu corpo, os retalhos da memória se colam à sua pele como as capas de recortes dos cadernos da infância, e quanto mais estreito o funil mais veloz ela desliza, encolhida sobre si mesma, empurrada pelas contrações daquele tubo movediço que a envolve e a expulsa, ela no meio do redemunho, gira, tonteia, delira, atravessada por uma dor lancinante, fisgadas, cãibras, ossos quebrados, ela já não respira… desliza na velocidade da luz… luuuz… luuuuuz… luuuuuuuuuuuz!!! Ela desmaia e não vê mais nada.

Eu-natura-001

Desperta horas depois, encolhida na relva fresca, lambuzada, tonta e cega, do lado de fora do túnel. Uma brisa suave lambe seu corpo. Ela hesita em abrir os olhos, como se não ver fosse seu último recurso para não despertar. Respira lentamente, sentindo o ar agora liberto entrar e sair de seus pulmões cansados. Tateia o leito de relva com as mãos espalmadas, recolhe uma pedrinha aqui, uma semente ali, adivinha um caminho de saúvas carregando pedaços de folhas, demora-se escutando o vento, e de olhos fechados imagina a cascata que desliza a poucos metros entoando um canto quase místico. Inspirando profundamente o cheiro de terra molhada, leva as mãos aos olhos ainda fechados e, deslizando-as pelos cabelos úmidos, vai abrindo as pálpebras pouco a pouco.

Reconhece uma clareira em meio a uma densa mata ciliar. O dia ainda está nascendo e ela escuta, ao longe, o canto do sabiá laranjeira. Estira os músculos, um a um, espreguiçando-se depois de uma noite longuíssima. Testa os movimentos, punhos, cotovelos, pés, joelhos, levanta-se devagar, ensaia uns passos, sente-se minimamente firme. Examina o próprio corpo, tentando reconhecer-se em seu novo habitat, e percebe que sua pele está recoberta por uma fina camada de recortes, uma segunda pele formada pelos retalhos da caminhada unidos desordenadamente pela gosma uterina. Com as mãos umedecidas na frescura da relva, começa a arrancá-los, um a um, sem dor, sem culpa, sem arrependimentos, dedicando-se durante horas ao ritual de extrair a pele morta e entregá-la ao vento. Novamente nua, nota que os retalhos deixaram marcas em seu corpo, manchas, verrugas, cicatrizes, pequenos portais para o pavilhão da memória. Desliza devagarinho as pontas dos dedos, acariciando sua nova casca, detendo-se em um ou outro sinal, desenhando suavemente os contornos.

Ela gosta do que vê.

O dia está lindo, céu azul, sol de primavera.

Ela tem fome. Sorri.

Cavaleiro de copas

Publicado: 11 de agosto de 2017 em filosofia barata, vida real
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cavaleiro de copas

O amor é uma ideia tão forte e abrasadora que a simples possibilidade de que ele se instale, milagrosamente, em nossa vida já é o princípio do milagre. Uma comichão que às vezes começa na pele, bem na superfície, e vai ganhando terreno, corrompendo a carne, fervendo o sangue, explode em fluidos e cheiros e calores, até o momento em que se instala definitivamente na mente – ou será no coração mesmo? – e nos arrasta atrás dele deixando para trás tudo e todos.

Amor é amor porque é inexplicável. Criamos imagens para representá-lo – o deleite do corpo, o regozijo da alma, a febre, a querência, o olhar demorado e doce, a pele, a pele… E vem junto o medo, o pavor de que esse instante de graça e comunhão com o que há de mais sagrado no universo se extinga no minuto seguinte. Queremos estancar a correnteza do tempo, prolongar o amor, esticar o amor até o fim da existência, viver o eterno gozo do sol que ao mesmo tempo acende e oprime o peito. É o paradoxo máximo da existência, dor e prazer em voltagens estratosféricas, uma fome insaciável quando mais saciado se está, um querer extremado quando tudo se tem, um não poder separar-se do que é o outro e ao mesmo tempo é a gente mesmo, inteiro e partido.

Por amor eu vivo, não mato, não morro. Deixo aos mortos que enterrem seus mortos. Pinto, danço, desenho, cozinho, escrevo poesias no ar para depois soprá-las como às flores das paineiras, espalhando lindezas. Por amor eu vivo e quero viver uma eternidade, correr, cantar, ser criança uma vez mais. Por amor eu renasço e começo tudo de novo.